De tempos em tempos, a humanidade é surpreendida com uma espécie de soluço global. Foi assim com a gripe espanhola, as guerras mundiais, a queda do Muro de Berlim e os atentados de 11 de setembro. A atual pandemia do novo coronavírus mudou dramaticamente a maneira como milhões de pessoas em todo o mundo vivem suas vidas. Muitas dessas mudanças serão temporárias. Porém, o cotidiano provavelmente não será o mesmo quando a pandemia passar. Alterações profundas devem ser sentidas por todos. Durante a semana, O POPULAR ouviu pesquisadores, intelectuais e artistas para tentar entender o novo mundo que nos espera.Pela primeira vez na vida de muitos, um evento global afeta a cada um de forma singular e coletiva simultaneamente. Na prática, nenhum cientista – social ou de qualquer outra área – tem condições, hoje, de saber como ficará o mundo pós-pandemia. “Qualquer projeção não passa de desejo, fantasia e suposição. Na linguagem popular, chute ou exercício de futurologia. No caso brasileiro, a tarefa é mais inglória, uma vez que a pandemia está imersa em um contexto de crise social, política, cultural e econômica sem precedentes, iniciada antes da própria chegada do vírus e radicalizada nas eleições de 2018”, destaca o professor de sociologia Luiz Mello, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás.Um dos fundadores do Núcleo de Ensino, Extensão e Pesquisa em Gênero e Sexualidade (Ser-Tão), Luiz ressalta que com a eclosão da crise pandêmica alguns pressupostos teóricos das ciências sociais ganharam materialidade prática. “Não existe capital sem trabalho, nem riqueza sem consumo. Não há casa arrumada e criança na escola sem o desprezado trabalho socialmente definido como feminino. Ficou claro que vidas, inclusive as humanas, para alguns, são descartáveis. A lógica do capital só faz concessões que lhe convém”, observa. Para o professor, se não quisermos ser destruídos – como indivíduos, sociedades e espécie –, precisaremos, a partir daqui, reinventar o mundo. “O vírus é a lupa que nos impõe enxergar a miséria humana e suas contradições, agora ampliada em escala exponencial”, explica.Valorizar amizadesO certo é que a doença que destroça sistemas públicos e privados de saúde, impondo o isolamento como medida de segurança e a escassez como ameaça já alterou o mundo que provavelmente nunca mais será o mesmo. “Nossas vidas já mudaram pela intensidade do pânico e desespero. Tudo o que era importante há um mês deixou de ser. As pessoas tiveram de fazer transformações radicais nos comportamentos, relações de consumo e valores”, explica a antropóloga Mirian Goldenberg, professora da Universidade Federal do Rio que pesquisa a terceira idade.Devido ao trabalho científico, desde 2015, Mirian convive intensamente com homens e mulheres de mais de 90 anos. “Os idosos estão sofrendo muito porque o que mais valorizavam era a independência e a autonomia. Estão desesperados, pois não sabem quando tudo isso vai acabar. Imagina o que é para uma pessoa de 97 anos, que tinha uma vida ativa e saía para encontrar os amigos todos dias, precisar hoje ficar dentro de casa para se proteger? A mudança foi muito violenta”, ressalta. Apesar do distanciamento social, a antropóloga afirma que os núcleos familiares e afetivos passaram a ficar mais próximos, nem que seja virtualmente, durante o isolamento. Nunca foi tão importante, por exemplo, ter amigos. “É um momento de muito amor, doação e generosidade. O que estamos vivendo agora, de certa forma, é como deveríamos sempre viver”, acredita Mirian. Para ela, a lição mais importante que fica da pandemia é que, mesmo nos momentos mais cruéis e trágicos, o ser humano tem a liberdade para escolher qual atitude tomar. “O isolamento, por mais paradoxo que isso seja, criou uma proximidade grande. Nunca estive tão próxima de quem amo. Acredito que as pessoas vão passar a valorizar mais coisas simples, como ter amigos, amores, respirar e até mesmo aquela fresta de sol que entra pela casa. Devemos parar de nos preocupar com coisas que não têm valor”, explica.A pandemia também colocou em destaque questões que já estavam sendo contempladas por outros motivos, entre eles a economia e a ecologia. Professor do Departamento de Ecologia & Evolução do Instituto de Ciências Biológicas da UFG, José Alexandre Felizola Diniz Filho acredita que a atual situação deve restabelecer a credibilidade da ciência e dos cientistas no Brasil e no mundo. Pela primeira vez na história, o Brasil enfrenta uma crise de saúde pública que obriga a mudança na rotina de todos os cidadãos. Enquanto a quarentena perdura, a ciência ganha mais espaço nos noticiários e, consequentemente, nas discussões familiares.“Apesar do aumento da polarização entre ciência e pseudociência no Brasil, os cientistas passaram a trabalhar de forma mais integrada, fortalecendo o conhecimento científico”, explica. O próprio pesquisador em ecologia foi convocado para trabalhar com epidemiologistas e outros cientistas para traçar estratégias de enfrentamento da pandemia em Goiás. Nem os recentes cortes de bolsas e do sucateamento sistemático da pesquisa nacional, principalmente nas universidades públicas, fizeram os cientistas desistirem da batalha contra o novo coronavírus.