Mesmo com algumas restrições em razão da pandemia de Covid-19, o sistema de transporte coletivo da Região Metropolitana de Goiânia tem visto aumentar o número de passageiros desde março deste ano, mas ainda assim a demanda está 40% abaixo do que se tinha em novembro de 2019. O mês é referência por ser o último visto como “cheio”, já que as medidas sanitárias começaram a ser adotadas em março de 2020, logo após as férias de verão e o carnaval. O fenômeno é visto em outras cidades do mundo e especialistas apontam que dificilmente teremos a volta dos usuários como há dois anos.O retorno de parte das aulas presenciais nas cidades da Região Metropolitana em agosto foi responsável por um incremento de 13% nos usuários. Ainda assim, não é possível mensurar se a demanda atual chegou ao ápice ou se ainda há espaço para crescer, visto que o sistema metropolitano tem perdido usuários desde 2013. A principal aposta tem sido os estudantes universitários, já que as instituições públicas só devem retornar presencialmente em 2022. Por outro lado, o aumento do desemprego e a manutenção do home office jogam contra.O geógrafo e mestre em Transportes Miguel Angelo Pricinote acredita que não haverá aumento na demanda no sistema metropolitano aos patamares de 2019. “Minha percepção é pelo o que vemos em outros países, que já tinham excelência em transporte, ao contrário daqui, e que não voltaram, como nos Estados Unidos, em Nova Iorque, e também na Europa”, diz. A arquiteta e urbanista Erika Kneib, doutora em Transportes e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), avalia que o retorno do passageiro é até possível, desde que as cidades e o sistema adotem medidas para atrair os usuários.Para a professora, a conjuntura mostra queda da renda, aumento do desemprego e receio da contaminação. “Se o usuário consegue achar uma solução alternativa para sair do sistema, normalmente ele não retorna. Em época de pandemia, essa alternativa baseou-se em duas opções: transporte por aplicativo e motocicleta. Por outro lado, a melhoria da questão sanitária, aliada ao aumento do preço dos combustíveis, pode sim gerar um incremento de demanda, mesmo que tímido.”Erika sugere ações como a implantação de corredores para diminuição do tempo de viagem e opções tarifárias diferenciadas, como incentivo para uso no entrepico, ou a aplicação da integração ao sistema além dos terminais e também com outros meios de transporte, como a bicicleta. No entanto, o mais próximo disso que está sendo feito é a finalização das obras do corredor exclusivo BRT Norte-Sul, que deve ter sua primeira etapa de operação, em parte da linha, entre o Terminal Recanto do Bosque e a Praça do Trabalhador ainda neste ano.Além disso, neste ano, a Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos (CMTC), junto da Prefeitura de Goiânia, tem avaliado uma nova modelagem, baseada em outro tipo de financiamento, além da tarifa, com o pagamento de subsídios. A intenção é que a verba seja capaz de realizar investimentos e manter a tarifa máxima no valor atual, de R$ 4,30. Arquiteta e urbanista e mestre em Transportes, a também professora da UFG Poliana Leite avalia que essa mudança, de forma isolada, não vai recuperar a demanda perdida.“Até que ponto o valor da tarifa interfere na demanda? Há alguns anos, 60% da demanda do transporte público era de vale transporte. Quem paga a tarifa não é necessariamente quem utiliza o transporte. Ou seja, o valor da tarifa não interfere por si só em sua escolha modal. O segundo ponto é baseado na premissa de que uma ação isolada não garante a recuperação do sistema”, acredita. Segundo Pricinote, só a tarifa não faz manter o usuário. “O principal é o tempo, o importante é o deslocamento em si, por isso a moto é a preferência. Ônibus tem que ser rápido, confiável e limpo.”Financiamento deve ser avaliadoA arquiteta e urbanista Poliana Leite entende que a busca por uma forma de financiamento do sistema de transporte coletivo não redunda, por si só, em aumento de demanda. Ela lembra que em 2016 foi realizada pesquisa, em parceria de diversas instituições, de percepção do usuário com relação à qualidade do Transporte Coletivo da Rede Metropolitana de Transporte Coletivo de Goiânia (RMTC), na qual 25 aspectos do transporte eram avaliados pelos entrevistados. “O ponto de menor nota, e que possivelmente influencia muito na tomada de decisão sobre utilizar ou não o transporte público, foi segurança na viagem (em relação a assaltos). Outros dois pontos mal avaliados foram conforto do veículo e lotação.”Para ela, isso significa que se o financiamento não for suficiente para melhorar os aspectos mal avaliados e manter os bem avaliados, como uso do cartão de embarque e distância de caminhada, não há como recuperar demanda exclusivamente com uma redução tarifária. “É por isso que reafirmo a importância de um programa sistêmico que envolva não somente os órgãos ligados diretamente ao transporte, mas toda a sociedade, incluindo instituições públicas e privadas de outras áreas.”Poliana ressalta que se esse tipo de programa for executado, “não será necessária a preocupação com a demanda para a manutenção dos custos de transportes, mas sim para o desenvolvimento da cidade”. “As soluções de transporte público não estão em ações direcionadas apenas ao próprio sistema. O transporte faz parte de um sistema de mobilidade que está inserido no sistema urbano. Ele interage com outros sistemas como o sistema de segurança pública, o sistema de saúde pública, de educação, entre outros.”Neste contexto, a urbanista, também professora da UFG, defende uma linha de pesquisa em desenvolvimento que se chama Engenharia Territorial. “Inicialmente foi criada com o objetivo de solucionar a difícil tarefa de conseguir investimentos para infraestrutura de transportes de forma sustentável. Hoje, esse é apenas um dos aspectos que ela trabalha. Um outro aspecto seria gerar crescimento e desenvolvimento de uma região por meio de programas territoriais que tem a participação da iniciativa pública e privada trabalhando de forma sinérgica.”Poliana explica que o conceito já está em uso no Japão. Na capital do País asiático, Tóquio, as concessões de transporte público incluem não somente as linhas de metrô, mas também a exploração comercial das estações de transporte público e a exploração imobiliária do entorno das estações. “Isso cria a possibilidade de ter uma receita adicional significativa possibilitando o investimento na qualidade do transporte e assim não precisa de subsídio público. Para o caso da RMTC, seriam necessários alguns estudos para desenvolver programas desse tipo, mudanças de regulamentação, mas nada que não possa ser feito.”CMTC vê oportunidadeA Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos (CMTC), a respeito dos números de demanda do sistema de transporte metropolitano, informa que a situação, tanto em Goiânia quanto no Brasil, “vislumbra uma grande oportunidade para priorizar ações que de fato favoreçam o transporte público coletivo (TPC ), haja vista que o serviço vem sofrendo perda de demanda desde 2013, acentuando o quadro ainda mais no período de pandemia”.O órgão gestor do sistema tem a percepção, dentro do movimento das cidades, com os serviços e atividades exercidas, de continuidade do home office, funcionamento da educação na forma híbrida e universidades sem adesão ao presencial, o que manteria a demanda atual abaixo em 40% do que se tinha em 2019. “E mesmo diante desse flutuar de demanda, com passageiro que já poderia estar dentro do serviço de transporte, no início desse mês (setembro), o sistema já registrou mais de 300 mil passageiros circulando”.Em outras oportunidades, a CMTC já havia afirmado ao POPULAR que entendia a operação no BRT Norte-Sul como capaz de aumentar a demanda pelo serviço, já que representa um ganho de velocidade e de frequência nas viagens, visto se tratar de um corredor exclusivo. A previsão é que o BRT entre em operação ainda neste ano, em uma primeira etapa, mas ainda sem data exata. A obra entre o terminal Recanto do Bosque e a Praça do Trabalhador deve ser entregue em outubro.A arquiteta e urbanista Erika Kneib, doutora em Transportes, acredita que o BRT “depois de completo, funcionando regularmente e integrado à rede existente ajude a atrair usuários, devido aos corredores exclusivos proporcionarem um menor tempo de viagem”.Ela lembra, porém, que o BRT é “apenas uma linha do sistema. É preciso pensar na rede como um todo.”Perda se arrasta há uma década Nos últimos doze anos, o sistema de transporte coletivo metropolitano convive com perdas de demanda, o que se tornou ainda mais acentuado com a pandemia de Covid-19. O ano de 2020 fechou com um decréscimo de 50% no número de validações, por exemplo. Para o geógrafo Miguel Angelo Pricinote, vários fatores contribuíram para a situação atual, e o principal deles é que as melhorias impostas no sistema não interferiram no maior interesse do usuário: o tempo de viagem. “Tivemos melhorias, mas nada que fizesse a viagem melhorar, a viagem em si piorou muito.”Pricinote aponta que muitas coisas do sistema são positivas, como o Centro de Controle e Operação (CCO) moderno, a ausência de cobradores, a tarifa única metropolitana, toda a frota com aparelho GPS, o consórcio das empresas, o sistema de informação ao usuário que indica o horário que o ônibus passa. “Tudo isso é bacana, mas, para o usuário, não mudou nada, só piorou. A confiabilidade e o tempo de viagem não ajudaram nada.” Ele lembra que o sistema de informação só conta o tempo de passagem do veículo, mas não informa como está o trânsito, tempo de chegada ao destino, itinerário e outros, por exemplo.O geógrafo ressalta que até há medidas para serem feitas, como a melhoria nas informações aos usuários, um sistema de bilhetagem que aceita outras formas de pagamento, como cartões de crédito, rever algumas linhas e a integração, mas tudo seria apenas mudanças pontuais. “Enquanto não for entendido o transporte como responsabilidade institucional, qualquer mudança é paliativa. Faltou investimento em infraestrutura, não foram feitos corredores. Espero que o BRT consiga melhorar isso. Mas o principal é que ainda não se sabe quem é o dono, a quem se reportar”, diz.A avaliação é que enquanto não houver a recomposição institucional do sistema e a definição de quem manda, fica difícil fazer qualquer mudança. “A CMTC (Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos) é um corpo sem cabeça, ela responde à CDTC (Câmara Deliberativa de Transportes Coletivos) que não se reúne, ninguém sabe quem é o presidente. A CMTC é a representante da gestora do contrato, mas a gestora não existe. Acaba apenas adequando o serviço à realidade, não consegue fiscalizar, nem fazer estudos, porque não tem recursos e nem independência.”No começo deste ano, o prefeito de Goiânia, Rogério Cruz (Republicanos), iniciou estudo para uma remodelagem do sistema. A primeira proposta era dar fim à tarifa única metropolitana, o que diminuiria os custos para os usuários da capital, mas aumentaria para as demais cidades. A proposta tem evoluído para uma criação de sub-redes, em que a tarifa máxima se manteria a partir de subsídios pagos pelas prefeituras e pelo governo, mas ainda não há acordo com todos, especialmente Aparecida de Goiânia e Senador Canedo. Pricinote afirma que seria um erro o fim da tarifa única, mas que é necessário definir um orçamento e responsabilidades entre os entes públicos. Já a arquiteta e urbanista Erika Kneib entende que a tarifa metropolitana diferenciada é necessária. “A tarifa única foi importante no início, mas acabou contribuindo para a abertura de inúmeros loteamentos periféricos na região metropolitana, passando o custo do espraiamento a recair sobre o usuário do transporte. Isso não se sustenta mais. Por outro lado, existe uma questão social que precisa ser tratada pelo social. Esse custo precisa ser dividido com a sociedade. Mas uma coisa é política social; e outra é política de transporte.”Segundo Erika, é preciso pensar em receitas tarifárias, mais que em subsídios. “Há uma série de instrumentos e elementos que, se aplicados, podem ajudar a custear o serviço. Poderia ser viabilizado um fundo abastecido com recursos, por exemplo, de estacionamento ou pedágio urbano”, argumenta.-Imagem (1.2315347)