Passeando com os netos pelo Parque Areião, deparei-me com um pau-de-jangada, disfarçado de jequitibá, no meio do arvoredo. Talvez, ele desconhecesse minha astúcia no reconhecimento das árvores. Não sei o nome científico, mas o nome popular é batata. É só bater os olhos, reconheço, por mais que a árvore finja ser outra, como aquele pau-de-jangada, querendo se passar por jequitibá. Seus galhos estavam esticados para cima, folhas pouco pilosas, tentando ultrapassar o teto do bosque e alcançar o jequitibá a seu lado, diferente do costume da espécie. Seus frutos de cardo, com espinhos moles, aparência de duros, eram um pouco mais alongados, para ficarem semelhantes aos opérculos da árvore vizinha. Mas, bati os olhos, e reconheci: um legítimo pau-de-jangada.Quando o identifiquei, veio-me um rosário de recordações. E meu coração palpitou. Lembrei-me de quando saímos da região do Morro do Macaco, em Iporá, e fomos para as barrancas do Rio Claro, no município de Jaupaci. Ao chegarmos lá, meu pai queria uma canoa para pescar. No Ribeirão das Lajes, a gente pescava de barranco. Já no Rio Claro, o esquema era outro. Precisava flutuar no veio do rio para capturar os peixes mais graúdos. Mas até que encontrasse um tamboril, no jeito, e convencesse meu tio Zé a fazer a canoa de cocho, meu pai resolveu remediar com uma jangada. Para isso, era preciso encontrar umas duas ou três árvores de pau-de-jangada, e ele mesmo providenciava uma, coisa mais singela do que canoa de cocho. Primeiramente, pensou em talos de buriti ou bambus. Minha mãe advertiu-o que o Rio Claro não era brincadeira, e uma jangada tão frágil era geringonça de desinteirar família.Fui com meu pai para o mato, pertinho, nos fundos do casebre. À beira do Ribeirão Ponte Queimada, ele achou, não uma, mas um grupo de paus-de-jangada, em confabulação. Uma árvore maior, grossa demais para o que pretendia, e uma turma de árvores menores, quem sabe, filhas e netas da mais velha. Meu pai pediu licença para a avó das árvores. Ela não disse sim nem não, mas quem cala consente. Ele derrubou três, o suficiente para fazer uma boa embarcação. Desprezou os galhos e as ponteiras. Tirou o facão da cinta e arrancou as cascas em longas tiras, da largura de um cinturão de caubói. Deixou-as amontoadas de um lado e torou os troncos em pedaços de 2 metros, que seriam o lastro da jangada. De dois em dois, levou os barrotes para uma clareira, onde dava sol, boa parte do dia, para apressar a secagem, ficarem fofos e flutuantes, que nem talos de buriti ou bambus, só que muito mais resistentes. Das cascas, fez um grande molho, amarrou tudo com uma fita mais estreita e jogou no fundo do riacho, tomando o cuidado de amarrá-lo numa raiz ribeirinha, para não rodar, no caso de enchente.Um mês depois, voltamos lá. Meu pai já o fizera várias vezes. Os barrotes estavam bem secos e leves. As cascas, curtidas. Havia uma gelatina apegada a elas. Meu pai foi passando a mão e jogando o godó dentro d’água. As fibras das cascas eram branquinhas, delgadas e fortes, que nem as do sisal, só que muito mais longas. Meu pai virou os roletes para acabarem de secar. Levou o rolo de embiras para casa e esticou-o na aba do rancho para perder a umidade. Depois, trançou caprichadas cordas. Um homem, que passou lá em casa, quis até comprá-las, para laçar as vacas e os garrotes.Uma semana depois, retornamos com as cordas. Meu pai atrelou os barrotes, de forma engenhosa, e deixou a jangada pronta para, no fim de semana, jogar no ribeiro e chegar até as águas soberbas do Rio Claro. Passei momentos felizes sobre a jangada. Ela nos serviu, por quase um ano, até que meu pai providenciou a tão sonhada canoa.Quanto ao pau-de-jangada do Parque Areião, ele pode ficar descansado, baixar os galhos, parar de depilar as folhas e arredondar os cardos. Ninguém, por aqui, está interessado em seus ossos e pele para fazer uma jangada, lançar no ribeirão Botafogo e alcançar o Rio Meia Ponte.