Parecia perdida. Olhava de um lado para outro, buscando uma direção. Por fim, a mulher baixinha, magra e de pele morena desistira de encontrar o caminho sozinha e me abordou: “Moça, sabe onde é a feira? Preciso ir até lá comprar verduras para o almoço, mas não sou daqui e não faço ideia de como chegar!”Dona Francisca estava na praça perto da minha casa. Era um domingo de manhã. Nos encontramos durante o passeio com a minha cadela. Expliquei o trajeto, mas percebi que ela estava ofegante e havia começado a tossir. “A senhora não quer se sentar um pouco naquele banco?”, sugeri.Ela aceitou a recomendação. Chamou minha cadela para perto de si, começou a acariciá-la e puxou conversa comigo: “Que tempo seco, não é? Estou sem ar e com essa tosse estranha desde que cheguei aqui”, contou. Dona Francisca é baiana, tem 65 anos e veio para Goiânia visitar a filha, o genro e o neto.Perguntei se estava gostando da estadia e ela abrira um sorriso: “Muito! Coisa boa é ver nossos filhos felizes!” Dona Francisca alegara que o genro tratava a filha e neto com tanto carinho e cuidado, que ela chegava a ficar comovida. “Só por isso, ele já ganhou meu coração”, disse, emocionada.“Ainda bem que minha filha tirou a poeira dos olhos”, afirmou dona Francisca. Intrigada, perguntei o que ela quis dizer com a afirmação. “Às vezes, a gente sofre tanto, que fica com o olhar contaminado, sem conseguir enxergar as coisas como elas são. É como se tivéssemos poeira nos olhos, entende?”, explicou.Dona Francisca foi casada durante dez anos. Teve cinco filhos com o ex-marido e padeceu, segundo ela própria, “toda sorte de judiação desse mundo”. “Ele bebia e me batia todo dia. Enquanto era só comigo, aguentei. No dia em que ele ousou levantar o braço para um filho meu, catei as tralhas, os meninos e fugi”, contou.“Passamos muita necessidade. Perdi a conta das vezes em que não tínhamos nada para comer. Devagarzinho, fomos vencendo. Sou analfabeta, mas botei a meninada para estudar, formar e ser gente honesta. Todos arranjaram bons empregos. Graças a Deus, a miséria ficou para trás”, lembrou. “Apesar disso, eu tinha medo de que Sandra, minha única menina, pensasse que todos os homens são uns trastes, sabe? É a história da poeira dos olhos. Fiquei receosa de que o que vivi a cegasse para a possibilidade de ter um casamento diferente e ser feliz, porque ela dizia que não queria ninguém”, justificou. Sandra passou no vestibular, em Goiânia, e veio para a capital estudar. Na faculdade, conheceu Pedro. “Ele é o oposto do meu ex-marido. Calmo, trabalhador, amoroso. Ainda assim, ela não o queria. Um dia, pedi que desse uma chance a ele e tirasse a poeira dos olhos. Sorte que ela me ouviu”, relatou, rindo. “A gente é quem faz a nosso destino, minha filha. Não viu a cantora que deu aquele show lindo ontem, lá na França? Imagine se ela tivesse se entregado e achado que nunca mais faria nada, por causa da doença dela? Tudo muda, se a gente quiser e batalhar”, refletiu.“A Céline Dion também tirou a poeira dos olhos, não é, dona Francisca?”, falei, brincando. “Isso mesmo! Você entendeu exatamente o que eu quis dizer. Nossos dias não serão iguais. Não é porque lá atrás não prestou, que lá na frente vai azedar!”, ensinou ela.Depois da prosa, dona Francisca levantou-se para ir à feira. “Vou logo, senão o almoço atrasa”, disse, antes de se despedir. O vento levantava a terra do campo onde os meninos jogavam bola. Esfreguei os olhos e tirei a poeira. Com a vista desembaçada, guardei a lição de esperança que recebi de presente e fui embora.